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Recentemente nas redes sociais mais uma campanha viralizou. Tal campanha, lançada pela revista TPM, traz pessoas (algumas delas famosas) segurando cartazes com a frase “Precisamos falar sobre Aborto”.Antes de qualquer comentário, cabe elogiar a estratégia adotada: ela é bem inteligente. Infelizmente ser inteligente não é sinônimo de ser correta ou mesmo ética. É uma propaganda e a lógica da propaganda não é fazer com que as questões sejam discutidas, mas que sejam aceitas sem maior aprofundamento.
Para dar um contexto maior aos que por ventura ainda não
tenham visto tal campanha, ela foi idealizada por pessoas que julgam que o
aborto é um direito da mulher e que por isso deveria ser legalizado o mais
rápido possível. Nesse sentido, os dizeres “precisamos falar sobre o aborto” não implicam no desejo de que a questão seja debatida. Afinal
para que discutir quando já se tem a resposta pronta?
A principal injustiça da campanha está em que um slogan que
afirma “precisamos falar” insinua que a questão não é discutida. E mais ainda:
quando esta palavra de ordem é brandida por um dos lados, a conclusão é que quem está do outro recusa-se
ao debate. Nesse contexto quem é contrário ao aborto é taxado de obscurantista,
anti-democrático, fechado ao diálogo. Um dos famosos que aderiu à campanha
chegou a comparar tais pessoas a escravagistas e nazistas.
Se há uma coisa que podemos dizer sobre quem é pró-vida é
que essas pessoas não fogem à conversa. Falam e falam muito. Várias vezes são
criticadas por isso. Muitos dos que agora dizem que é necessário falar sobre o
aborto acusaram de fundamentalistas quem quis levantar essa pauta durante a
campanha presidencial. Afinal é necessário ou não falar sobre o assunto? Ou
melhor, será que dizer que é preciso falar sobre algo significa apenas que um lado deva
ter voz?
É interessante ver os argumentos mobilizados por alguns
daqueles que dizem que é preciso falar quando na verdade desejam dizer
“queremos liberar”. Citam diversos números falando de mortes de mulheres em
abortos clandestinos. Tais estatísticas são suspeitas e não é novidade para
ninguém que mesmo um ex-presidente da República já admitiu em público ter
mentido sobre elas. Citam tragédias recentes nas quais pessoas perderam a vida
em clínicas ilegais. Não há que se negar a tragédia, mas é, no mínimo,
ingenuidade acreditar que a legalização do aborto é a única saída para resolver
tais problemas. Será que não é possível uma política pública de maior apoio a
mulheres grávidas em situações difíceis? Um combate mais eficaz a tais clínicas?
Algo que muito me incomoda é conhecer pessoas que bradam esses argumentos e
insistem para jovens grávidas irem justamente a tais “estabelecimentos”. Cadê a preocupação e a coerência?
Há também certa má fé na utilização dos dados, não por
todos, mas por alguns. Dizem que o aborto deveria ser legalizado porque há
consequências sociais negativas. Acontece que tais consequências não são o
principal motivo do desejo pela legalização.
Os defensores da “interrupção voluntária da gravidez” julgam o aborto um direito da mulher e acreditam que, mesmo em contextos nos quais não existam as tais
consequências negativas, o destino do
bebê em gestação deveria ser decidido pelo arbítrio da grávida.
Mais uma vez a retórica parece colocar os que não são
pró-escolha, mas que se definem como pró-vida, como contrários à liberdade
feminina. Um olhar mais sóbrio há de perceber que não há negação da liberdade.
Apenas a afirmação que ela não é um direito absoluto, mas que deve ser vivida
em relação a outros direitos. Nesse contexto o direito à vida do feto seria anterior
ao direito à liberdade da mulher. Além disso, e de maneira rápida, cabe dizer
que a mãe não é a única afetada pela gravidez. O pai também o é, e de maneira
tão definitiva quanto. Claro que isso não significa que se os dois concordarem
o aborto está “ok”, mas coloca uma questão àqueles que afirmam ser tal prática
consequência “do direito sobre o próprio corpo”. Talvez agora alguns possam dizer que vários
homens não assumem suas responsabilidades. Sobre isso, cabe reconhecer com
tristeza, que é verdade. O erro de
indivíduos, no entanto, não deve fazer com que a institucionalização de outro
erro seja justificada pela sociedade.
Não é incomum alguém dizer que aqueles que são contrários ao
aborto o fazem por motivos religiosos. Tal posicionamento é, mais uma vez no
mínimo, falacioso. No fundo não importa se o motivo é religioso, mas se o valor
é humano. Se alguém combater a miséria por medo do inferno ou para melhorar na
próxima encarnação não há que se denegrir tais pessoas por terem fundamentos
metafísicos para sua ação. Se alguém lutou pelos direitos civis dos negros
(sim, Martin Luther King, me refiro a você) citando versículos bíblicos, sua
luta não é menos digna.
Claro que impor prescrições típicas de um grupo religioso a
toda sociedade é um erro. Ninguém gostaria, por exemplo, de ser proibido de
comer presunto porque este é interdito em algumas crenças. O fato de existirem
costumes aplicáveis apenas aos que creem não significa que em uma religião não
existam valores que são universalizáveis. A própria noção da igual dignidade
entre os seres humanos surgiu primeiro em um contexto religioso. Isso, no
mínimo, pode levar a questionar se alguns
valores que são chamados de
fundamentalistas e moralistas, não seriam simplesmente humanistas...
Bom, talvez eu esteja sendo um pouco injusto em criticar a
incoerência da campanha. Afinal ela disse “precisamos falar sobre aborto”, não
diz “precisamos conversar sobre o assunto”. Uma fala pode ser unilateral,
monopólio de uma única pessoa ou grupo. Já uma conversa precisa de abertura ao
outro e possibilita o incômodo de ser atingido por aqueles que discordam de
nosso discurso. Quem quer apenas falar pode comodamente tapar os ouvidos ou
apenas fingir que escuta enquanto o outro fala ( talvez esperando sua vez de
voltar a falar) . Já quem quer verdadeiramente conversar tem que começar pela
disposição de ouvir
Alessandro Garcia
Doutorando em Sociologia - UFRJ / Fundador da Oficina de Valores
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