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Esse
texto é sobre futebol. Se você não gosta de futebol, tudo bem, eu também não.
Mentira, gosto sim. Mas seria capaz de mentir só para gerar empatia e fazer
você continuar lendo, porque esse texto é sobre algo mais que futebol também.
Gosto
de futebol e de literatura. Parecem gostos muito diversos, mas só se você não
conhece Nelson Rodrigues. O futebol é uma fonte inesgotável de expressões
geniais e histórias fantásticas, e a literatura dá uma dramaticidade ao esporte
que faz valer e se vale do bordão “não é só um jogo”.
Na
semana passada, o Leicester City foi campeão inglês. Ontem, 8 de maio, eles
receberam a taça. O que? Nunca ouviu falar do Leicester? Nem eu, até uns seis
meses atrás. Mas e daí, o que o título deles tem demais? Por que um
texto sobre isso no blog? Esse não é um texto (só) sobre futebol, e
pra você entender porque esse clube e esse título mereceram um texto aqui, vou
contextualizar.
O
Leicester é um clube antigo e pequeno da Inglaterra, há muitos anos alterna
participações na primeira e na segunda divisão inglesas. Ano passado, os Foxes –
apelido do clube – quase foram rebaixados, escaparam nas últimas rodadas. São
um time pobre, e a liga inglesa é a mais rica do mundo, com o maior número de
times ricos no mundo – e, no futebol de hoje, dinheiro ganha jogo; ganha jogo,
títulos, torcida, moral. O Leicester rompeu com isso. Começaram o campeonato
com uma chance de 1 em 5000 nas casas de apostas da Europa. Foram campeões. A
raposa virou zebra na terra da Rainha.
O
título deles tem sido chamado de “maior zebra da história do futebol”, “conto
de fadas” com “roteiro digno de Hollywood”. E, além disso tudo, os personagens
dessa história dão mais uma dimensão literária/fantástica ao título.
Os
maiores destaques do time no ano:
Mahrez,
O Craque. Meia-atacante, argelino, com tudo que isso significa em tempo de
crise migratória e explosão da xenofobia na Europa. Melhor do campeonato,
eleito pelos jogadores.
Kanté,
O Prodígio. Jovem, negro, há pouco tempo jogava a terceira divisão francesa.
Hoje, é volante titular da seleção da França.
Vardy,
O Artilheiro. Há cinco anos, se dividia entre o futebol e o trabalho numa
fábrica. Jogou por anos na sétima e na oitava divisão inglesas. Mostrava
talento, mas era dispensado por motivos banais. Por seis meses, uma
tornozeleira eletrônica o fez sair mais cedo dos treinos e jogos: foi condenado
a prisão domiciliar por uma briga de bar em que se envolveu pra defender um
amigo deficiente auditivo. No Leicester, chegou a tomar bronca por ir treinar
bêbado. Na temporada 2015/2016, foi artilheiro do time, melhor jogador do
campeonato pela imprensa e tem sido convocado para a seleção inglesa. Sua
história, de fato, vai virar filme.
Por
fim, Ranieri, O Treinador. Velho e desacreditado, já havia treinado vários
clubes grandes da Europa, mas nunca tinha ganhado nenhum título expressivo –
tem um histórico de vices. Antes do Leicester, estava desempregado havia meses
– foi demitido da seleção grega depois de sofrer uma goleada para Ilhas Faroe. Contratado
pelos Foxes, a primeira coisa que ouviu do presidente foi “tente não ser
rebaixado”. Simpático, conquistou com entrevistas bem humoradas e, entre suas
tiradas, uma história sensacional: prometeu pagar pizzas para o time se
passassem um jogo sem tomar gols. Na hora de pagar a aposta, colocou o time
dentro de uma cozinha, diante dos ingredientes, e disse “se quiserem algo, tem
que trabalhar para ter”.
Há
muito sobre o título do Leicester na televisão, nos jornais, na internet.
Coisas como “isso prova que o futebol não é dinheiro”, “ainda há emoção no
jogo”. O que eu não li em lugar nenhum é como esses personagens são simbólicos
diante das realidades de exclusão e elitismo que vivemos fora de campo.
Repare,
os heróis da história são: um estrangeiro africano; um jovem negro; um operário
com ficha criminal e histórico de alcoolismo; e um velho “ultrapassado” e
perdedor. Nada mais literário, nada mais real.
Existe
um livro chamado “O futebol explica o Brasil”. Eu nunca li, mas faço uso da
ideia que o título antecipa: o futebol reflete e evidencia realidades
políticas, sociais, humanas, de maneira que é possível ver com clareza dentro
de uma “tela” verde com contornos de cal branca o que às vezes está do nosso
lado e não vemos. Em termos que ninguém ousa usar porque é como olhar a ferida
aberta sob um curativo mal feito, a vitória do Leicester é surpreendente
porque é surpreendente o pobre ganhar do rico, o velho superar os jovens, o
alcoólatra ou o criminoso se recuperarem, o operário representar seu país
internacionalmente, o estrangeiro “subdesenvolvido” e o jovem negro terem
sucesso em uma nação de primeiro mundo. Eu pergunto: por que tudo isso é
surpreendente? Porque é raro. E por que é raro? Porque nem nós que queremos ver
acontecer acreditamos que seja possível. Eu disse que o Leicester começou o
campeonato com chances de 1 em 5000. Eles já eram líderes no meio do
campeonato, e as apostas ainda eram de 1 em 4000.
Eu
li muito sobre o título do Leicester. Porque não conhecia o time, porque gosto
de zebras e histórias de superação, porque sou fã de futebol. Tentei escrever
algo que não repetisse as muitas colunas e blogs que estão por aí. A última
coisa que li me fez parar no título: “Zebras não tem históricos de boa
sequência”, ou seja, quando coisas assim acontecem, não quebram o paradigma,
são pontuais. O que eu não li sobre a vitória do Leicester foi: “Título dos
Foxes quebra elitismo e inicia novo tempo no futebol”. Gostaria de apostar que
isso vai acontecer, apesar de o futebol refletir a realidade, e ela não ser
animadora nesse sentido. Mas eu sou esperançoso. Tão esperançoso que apostaria
mesmo com chances de 5000 contra 1.
Gustavo Cardoso Lima
Estudante de Jornalismo - UERJ
Oficina de Valores
Oficina de Valores
1 comments:
Aplausos para ti
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