Imagem de: Jornal Tabaré
– Bom dia, senhores passageiros. Desculpe interromper o silêncio da sua
viagem, mas estou aqui hoje para ANUNCIAR UM ASSALTO!
Era assim que João abordava os
ônibus e trens do Rio de Janeiro, várias vezes todos os dias. Não, ele nunca
foi preso. Mas não se revolte ainda.
Da entrada (ér... triunfal?) de João, seguia uma enumeração enfática de dados
sobre a corrupção no Brasil, aumentos de tarifas, violência urbana. Quando o
orçamento permitia, distribuía folhetos, muito mal feitos e mal escritos, mas
de muita boa vontade e informação, produzidos numa lan house de perto da sua casa, na Zona Norte. João informava o seu
povo.
Ele decidira fazer da informação
uma missão na época em que trabalhou de engraxate. Atendia semanalmente a um
mesmo professor universitário que simpatizara com ele, e por isso voltava
sempre. João ouvia-o narrar algumas notícias de jornal e comenta-las,
especialmente sobre seus recortes nada imparciais. O professor dizia “Inútil!
Informação devia ser utilidade pública!”. Ah!, alguns termos rebuscados – utilidade
pública não é um deles, apenas me fez lembrar – João não compreendia.
Largara os estudos aos 11 anos para poder dar conta do trabalho que fazia desde
os 6: “auxiliar de feirante”, como
ele brincava ao contar que mais tarde foi promovido a “gerente de barraca”. Mas
aprendera um pouco de política, economia, utilidade
pública com o professor, também nas conversas de barbearia e bar, na feira
mesmo e... no ônibus. E dos ônibus, dos ambulantes, para não tirar o mérito,
teve sua ideia. Espalharia informação por ali.
– Bom dia, senhores passageiros. Desculpe interromper o silêncio da sua
viagem, mas estou aqui hoje para ANUNCIAR UM ASSALTO!
De alguns veículos, ele acabava
enxotado, antes mesmo de ler o primeiro item da sua lista (“Um estudo
realizado pela da Fiesp (Federação das Indústrias de São Paulo) revelou os prejuízos
econômicos e sociais que a corrupção causa ao País: R$ 69 bilhões
de reais por ano”*). Enxotado por algum motorista ou fiscal mal-humorado ou
pelos passageiros que, de susto, se revoltavam contra ele. Alguns consideravam sua
abordagem uma brincadeira de mau
gosto. Mas João já fora também aplaudido, de pé muitas vezes – o que não pode
ser muito considerado, já que seu público era de passageiros do transporte
público do Rio. Havia outros que o consideravam um a serviço da tal utilidade pública.
João virou matéria de jornal. Recusou a tv, não queria “muita exposição”, como
disse, além de que não gostava de câmera. Aceitou uma matéria com foto num
jornal popular apenas. Detalhe cômico na sua entrevista, fez sucesso sua
confissão de que contabilizava os veículos em que subia. O motivo? Sonhara ser
jogador e fazer mil gols como Pelé; como não pode, resolveu que faria mil
“buzão e trem”. Como fez mil fácil, estabeleceu cem mil como marca. Em 6 meses,
estava na casa dos nove-mil-quase-dez.
Sem aviso, foi primeira página. Foi caracterizado como herói
urbano e ganhou a alcunha de trovador da
zona norte.
Todo herói tem sua mocinha: Dábila, que conheceu moleque
e foi a única namorada. Todo herói tem também suas fraquezas: Ryan e Rayssa, 3
e 2 anos. Quase todo herói tem seu fiel escudeiro: Demerson, amigo e músico de
bar, acompanhava quando podia as incursões de João aos carros e vagões, e foi
quem acrescentou melodia aos discursos, o que rendeu o apelido de trovador. João julgava, por essas
coisas, por algumas outras também, mas principalmente por essas, que a vida era
boa. Tudo isso contado na entrevista, só fez aumentar a repercussão.
João queixava-se de uma coisa só nessa vida: na maioria
das apresentações, os ouvintes permaneciam indiferentes, o que ele nunca
entendeu. Como alguém pode não reagir
diante da denúncia da própria enganação? Se alguém tiver explicação pra isso...
Meu palpite, ao ler o jornal: as pessoas eram como avestruzes, diante do
problema, enfiam a cabeça na terra (ou nos smartphones)
e fingem que nada demais acontece ao seu redor.** Nunca tive tempo de conhece-lo
e explicar essa ideia ao nosso herói urbano, que poderia ser consoladora, por
ser uma explicação, mas aterradora, por ser um triste diagnóstico do ser humano.
Mas voltando a falar no herói, toda história de um tem o seu anticlímax, certo?
Aqui vai o da história de João. Num dia especial, em que
João cantaria a farsa ao povo pela
décima milésima vez, a faltar três vagões ou ônibus para a significativa marca:
– Bom dia, senhores passageiros. Desculpe
interromper o silêncio da sua viagem, mas estou aqui hoje para ANUNCIAR UM
ASSALTO!
Bam! Bam!
Dois tiros. Um policial –
querendo ser herói numa história que não era sua – acertou duas vezes o peito
de João. Alguns passageiros que reconheceram o trovador da zona norte logo gritam, desesperadas, ao pm seu engano. Alguns instantes até a
compreensão e então... ele chora, pelo menos, mas num perdoável impulso,
naturalmente humano, de eximir-se, alega que João “não devia fazer aquilo,
falar daquele jeito, muito arriscado, como eu ia saber?!”
Não ia. É o que acontece quando
se vive em uma zona de guerra: o instinto de sobrevivência governa o homem, e o
homem reduzido ao instinto é um animal, que faz do espaço que habita uma selva.
O medo é fruto do caos, ou o caos é fruto do medo. Qualquer das duas serve para
explicar porque João morreu.
*
* *
Um detalhe que,
propositadamente, esqueci de contar: O jornalista que fez a matéria sobre João
chamou-o colega, colega de profissão mesmo; Isso porque João Informava a
verdade.
Fez-me lembrar uma história
de Madre Teresa de Calcutá, que durante uma entrevista, resolveu aconselhar os
jornalistas dizendo: “o que eu faço, qualquer um pode fazer, mas o que vocês
fazem, nem todos podem. Por isso, comprometam-se com a verdade, porque quando
vocês faltam com ela, fazem grande mal ao povo, mas quando comunicam-na, ajudam
a construir uma sociedade melhor.”
Eu estive, ao trazer a
fala de Madre Teresa e ao contar a história de João, descomprometido de algumas
e quaisquer verdades, respectivamente. “Algumas”, porque as palavras de Madre
Teresa não são exatamente essas, mas essas equivalem as suas em sentido;
“quaisquer”, porque João é um personagem infelizmente fictício. Infelizmente.
Gustavo Lima
Estudante de Jornalismo
Oficina de Valores
**Disse “meu palpite”, mas na verdade essa ideia foi tirada do livro “Vidas Sinceras”, de Rafael Llano Cifuentes
1 comments:
Excelente texto, Gustavo!
Bem escrito, envolvente e com um tema super atual da violência urbana e as ações truculentas que sempre são "justificadas" pelas autoridades que primeiro atiram para depois saber em quem foi.
Não tenho dúvidas de que será um excelente profissional!
Abraços!
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