O maior homem que já pisou no chão deste mundo, no conjunto daquilo que ensinou deixou um conselho muito singular: sejam como crianças! E mais: condicionou o reino dos céus a esta imitação da infância. Neste dia da criança, quero chamar a atenção para a criança dentro de nós que não podemos deixar morrer ou que talvez devamos ressuscitar.
Sei que há muita idealização da infância e que nem tudo são flores para as crianças ou nas crianças. Como em todas as idades, na infância há dores e alegrias, generosidade e egoísmo. No entanto, há nos primeiros anos de nossas vidas virtudes que por vezes deixamos morrer quando envelhecemos. Muitas vezes fazemos isso sob a alegação de uma suposta maturidade. Lembro com gosto das palavras de C.S. Lewis quando este afirmou que evolução e amadurecimento envolvem mais acréscimo que transformação. Diz esse grande escritor que aprender a gostar de vinho não implica largar o suco de laranja.
O que as crianças têm e que não podemos perder? Penso que são muitas coisas, mas suspeito que exista algo essencial. Desconfio seriamente que seja a capacidade de encantamento com o mundo. A criança tem olhos virgens e tudo para ela se mostra como uma novidade. O caráter de novo com que todas as coisas se revelam permite que seus olhares captem o extraordinário da realidade que nos cerca.
Não foi a toa que Aristóteles disse que a filosofia nasce do assombro com o mundo, afinal só quem é capaz de encantar-se por algo, nutre interesse por esse algo. O mundo fica menos interessante quando julgamos tudo óbvio e nos damos por satisfeitos com respostas superficiais. Parece que o grande mestre grego nos chamou atenção tanto para o fato de que, de certa maneira, a filosofia é infantil quanto para a percepção de que a atitude da criança é filosófica.
Penso que ao crescermos lentamente, vamos nos acostumando com o extraordinário que nos circula e, infelizmente, acabamos por ficar cegos para ele. Parece que perdemos a capacidade de enxergar as cores e ficamos apenas no preto e branco (por vezes também com o cinza). Ou pior: até enxergamos as cores, mas não conseguimos mais vibrar de empolgação com o colorido. Para chamar a atenção de um adulto que deixou para trás a criança, as coisas precisam brilhar como neon.
É interessante perceber como coisas simples distraem as crianças. Lembro de meu afilhado Pedro, que sempre que vai à minha casa pede para mexer em um enfeite que possui alguns imãs e fica um bom tempo brincando come o objeto. Ele realmente fica curioso e entretido com o imã...E não é para menos! Um imã é realmente algo muito interessante. É triste quando deixamos de perceber isso.
Várias das melhores memórias de infância dizem respeito a situações vividas em lugares pouco badalados. A casa de uma avó, um sítio que possuía como grande atrativo apenas o amplo espaço, o campinho na esquina. Tais lugares eram palcos de grandes aventuras. Quando o palco continua o mesmo e a peça torna-se sem graça, cabe desconfiar da capacidade do ator.
Encantar-se e empolgar-se com o simples não é algo banal. Talvez seja uma das maiores virtudes que possamos ter. A busca consumista que pretende preencher o vazio que nunca se vê satisfeito é a característica de uma sociedade que mata a infância cada vez mais cedo. Para quem sabe encantar-se, o próprio quintal torna-se maior que o mundo. Para quem perdeu essa capacidade, o universo pode vir a ser menor que uma casca de noz.
Chesterton, ao falar sobre a capacidade infantil de encantamento, diz que uma criança de sete anos achará extraordinário se alguém lhe disser que abriu a porta e viu um dragão; já uma de 4 anos julgará fantástica a notícia de que a porta aberta deu para um jardim. Embora as duas sejam sábias, a segunda é mais, afinal julgar maravilhosa uma porta aberta é uma atitude típica de quem não quer se ver limitado.
A criança vive como uma aventureira que desconhece os perigos, por isso precisa do adulto para orientá-la. O adulto, por vezes é alguém que vive só pensando nos perigos e precisa da criança para lembrá-lo que a vida deve ser vivida como uma aventura.
Quando um adulto é chamado de infantil, normalmente sente-se ofendido. E isso tem até certo sentido, afinal quem diz isso provavelmente está frisando atitudes de alguém que é irresponsável ou mimado. Reconheço que tais atributos podem estar na infância e que é preciso superá-los, mas ao mesmo tempo julgo triste que essa seja a imagem de mundo infantil que carregamos para a vida adulta. Infantil deveria ser elogio...
O grande escritor Chesterton foi chamado de “criança de cara gorda” e um adversário intelectual certa vez disse que ele era “um menino em corpo de homem”. Acredito que o famoso jornalista tenha ficado contente com tamanho reconhecimento. Não é a toa que o pessimista Kafka, ao ler um livro desse obeso autor inglês sem saber nada sobre ele, exclamou: esse homem deve ser absurdamente feliz.
Para encerrar vou deixar palavras de uma canção que conheci recentemente e que muito me falou. Recomendo, para aqueles que dispõem de um tempinho, que não apenas leiam a letra que está abaixo, mas escutem a música após a leitura deste texto. Pode ser a chance de chamar de volta a criança que deixamos para trás.
Alessandro Garcia
BOLA DE MEIA, BOLA DE GUDE
Milton Nascimento, Fernando Brant
Milton Nascimento, Fernando Brant
Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem pra me dar a mão
Há um passado no meu presente
Um sol bem quente lá no meu quintal
Toda vez que a bruxa me assombra
O menino me dá a mão
E me fala de coisas bonitas
Que eu acredito
Que não deixarão de existir
Amizade, palavra, respeito
Caráter, bondade alegria e amor
Pois não posso
Não devo
Não quero
Viver como toda essa gente
Insiste em viver
E não posso aceitar sossegado
Qualquer sacanagem ser coisa normal
Bola de meia, bola de gude
O solidário não quer solidão
Toda vez que a tristeza me alcança
O menino me dá a mão
Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto fraqueja
Ele vem pra me dar a mão
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