Alegria de pobre
Lembro-me da primeira oração que
fiz na vida. Não foi numa igreja, não foi ajoelhado ao pé da cama, não foi num
culto ou numa missa. Foi num templo, mas num templo diferente, o “templo
sagrado do Futebol”, o Maracanã.
Era final de campeonato carioca,
ano de 2007, e eu estava lá, nas extintas cadeiras azuis, vendo o jogo de um
ângulo entre o corner e as traves, nervoso e desbocado como era (e ainda sou,
confesso, quando se trata de futebol), gritando tudo que se grita em um estádio
e em uma decisão de campeonato. O fato é que, lá pelas tantas do segundo tempo,
meu time perdia.
Nós nos espremíamos, aflitos, nas
cadeiras, que ficavam embaixo, mais próximas do campo, e nas arquibancadas, lá
em cima, vendo sobrar cadeiras do outro lado, onde a torcida era menor e,
então, mais alegre. Erámos mais de 100 mil no Maracanã, mas com certeza, pelo
menos 70 mil eram dos nossos. No que me ocorreu cessar a gritaria e... rezar.
Eu fiz a seguinte oração: “Ei! Eu
sei que o Senhor ama todo mundo igual, mas pensa: tem muito mais filho seu
torcendo pro Flamengo que pro botafogo, então, se o Flamengo perde, vai ter
muito mais filho seu triste. Eu acho que se o Senhor ama todo mundo igual, o
que desempata é a quantidade. Se o Flamengo ganhar, vai ter muito mais filho
seu feliz.”
Aqui interrompo a história. Eu já
fui ao Maracanã algumas vezes, é lazer de um prazer e de uma alegria que ainda
não se me apresentou semelhante. Já vi vitórias, muito mais delas, e derrotas.
Algo elas tinham em comum: nestas, era comum ouvirmos cantarem “Favela, favela,
silêncio na favela”, naquelas, era comum respondermos “Favela, favela, festa na
favela.”
Parece que não importa quão justo
e humilde seja um cidadão torcedor arco-íris (os torcedores de outros clubes, o
que significa quase necessariamente que sejam anti-rubro-negros), em algum
momento de qualquer debate sobre futebol, ele vai dizer que o Flamengo é time
de pobre, favelado e ladrão. É lógico que a implicância entre torcedores tem um
quê de irreal, de estereótipos caricatos e generalizações inverossímeis. Quero
dizer: não acredito que alguém que zombe do Flamengo por ser time de pobre
realmente acredite que ser “de pobre” desqualifica alguma coisa ou, pior,
alguém. De fato, pode ser que acredite, mas não acho que a maioria seja dos que
creem nessa besteira.
Eu, particularmente, acho ótimo
que sejamos o time da massa, do povo, o “mais querido”. Sinto, e pode achar o
leitor que exagero ou romantizo a coisa aqui, que de alguma maneira o Flamengo
dá esperança a quem sofre. Lógico que não quero dizer que ver seu time ganhar
campeonatos compensa toda injustiça social, toda miséria e falta de educação de
qualidade que essa grande massa sofre. Mas acredito que seja um alento.
Sem essa história de “pão e
circo”, o futebol não é um “instrumento de controle do governo”. Um governo
pode tentar usá-lo assim, mas é preciso ser ignorante, e não altamente
esclarecido, para não perceber que o futebol e, aqui apelo mesmo, o Flamengo
são e significam mais que isso para o povo pobre. Numa visão longânime, a
esperança de ganhar dinheiro jogando bola profissionalmente, o sonho de vestir
uma camisa de clube grande (por maioria de votos, especialmente a do Flamengo),
tira muitos jovens de bocas de fumo para treinos de escolinhas. Onde é exigido,
melhora até seu desempenho escolar.
Sendo, de alguma maneira, mais
pontual e imediatista, às vezes o jogo de domingo no Maracanã (ou outro estádio
mesmo) é o único lazer e momento em família que muitas famílias têm. No Rio,
posso dizer, é praticamente uma tradição de “pai e filho”. Por alguns reais (e
hoje, digo em protesto, mais reais que há alguns anos), algumas horas de um
momento mágico que para a maioria é coisa de só se ver na televisão. Uma camisa
com o nome de um ídolo, as zoações com os amigos, enfim, o futebol tem a
capacidade de fazer o que devia acontecer, mas não acontece, por outras vias: a
alegria do pobre. E nenhum clube faz isso melhor que o Flamengo.
Voltando, se você ainda se
lembra, à história do jogo que “me tirou do ateísmo”: lá pelos 45 minutos do
segundo tempo (digo, sem compromisso com a realidade, porque, com resultado
adverso numa final, tudo parece 45 do segundo tempo), uma promessa vestindo a
10 de Zico (salve o Rei!) pega a bola na intermediária, puxa pra direita e
acerta um chutaço. Renato Augusto deixou o placar dois a dois e a decisão seria
nos pênaltis. Com Léo Moura na cobrança decisiva, dando o golpe final, nós
ganharíamos.
Mas o que ninguém, entre os
milhões de então aflitos e logo extasiados rubro-negros, sabia era que aquela
final foi ganha minutos antes, quando um pequeno rubro-negro de 13 anos parou
de xingar o juiz para dizer a Deus: “Senhor, faz a alegria dos pobres hoje!”.
Gustavo Cardoso Lima
Estudante de Jornalismo / Oficina de Valores
1 comments:
Muito legal!!
Parabéns...Dois assuntos que muitos pensam em não se encaixar e foi mt bem abrangido e prende quem lê.
Muito legal Gustavo
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