Por: Alessandro
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Sou colecionador de quadrinhos. Embora o grosso de minha coleção seja composto por “hqs” de super-heróis, leio gibis dos mais diversos estilos e procedências. Quadrinhos europeus, mangás, brasileiros... Histórias seriadas mês a mês, álbuns destinados a livrarias e com histórias fechadas. Enfim, sou um apreciador daquela que é conhecida como a nona arte.
Dentre os tipos de quadrinhos,
estão as tirinhas semanais publicadas em jornais. Embora aprecie bastante o
conteúdo de muitas dessas tiras, normalmente as leio apenas quando saem em
coletâneas com várias histórias em sequência. Faço isso por vários motivos, um
deles é a praticidade. O outro é que julgo que mesmo que grande parte das tiras
não tenha continuação, o raciocínio do autor e a caracterização das personagens
são melhores captados quando várias das pequenas histórias são lidas em
sequências.
Embora meu conhecimento das tiras
seja menor do que de outros seguimentos dos quadrinhos, admito que algumas das
minhas “hqs” favoritas foram publicadas nesse formato. Entre elas destaco a
obra prima de Bill Watterson, Calvin e
Haroldo, ou em inglês, Calvin and Hobbes.
Mesmo dispondo de pouco tempo leio umas três
mil páginas de quadrinhos todo mês e tenho em minha casa algumas centenas de
quadrinhos não lidos esperando em uma fila que só aumenta. Mesmo com esse
contexto, sempre que um novo álbum da dupla de personagens é lançado no Brasil
ele passa na frente de todos os outros e é lido com prioridade.
Opa...Já estou falando demais de
mim e pouco do que realmente desejo, que é apresentar alguns dos elementos que
julgo tornarem Calvin e Haroldo uma tira tão fascinante. Para fazer isso, vou narrar
ainda uma pequena e insignificante experiência pessoal. É a última (ou
penúltima!), prometo.
Recentemente foi relançado no
Brasil, o álbum do Calvin chamado “Existem Tesouros em Todo Lugar”. Comprei o
mais rápido possível e pus-me a ler. Logo na primeira página me deparei com a
seguinte tira:
Admito que não consegui conter o
sorriso. Li e reli a tira algumas vezes
antes de ir para a página seguinte. Conforme fui lendo o livro, outras e outras
do mesmo nível se seguiam. Cheguei a ficar com raiva pela minha memória, afinal
bem rapidinho iria esquecer todas aquelas pequenas obras primas. Consola saber
que isso, ao menos, torna a releitura quase uma leitura inédita.
A tira acima traz um dos pontos
fundamentais do encantamento que Bill Watterson consegue transmitir em sua obra:
o olhar infantil sobre o mundo. Quem julga que infantil é nessa frase empregado
de alguma forma pejorativa, está precisando urgentemente ler as aventuras do
Calvin. O olhar infantil é aquele que é capaz de descobrir tesouros enterrados
no próprio quintal ou em qualquer outro no qual tenha a oportunidade de cavar. A infância é o período no qual o
maravilhamento é a regra da vida. Como é maravilhoso alguém poder pedir para
repetir uma experiência e gargalhar como se a tivesse feito aquilo pela
primeira vez. É o fantástico “de novo” que todos os que já conviveram com
crianças certamente já ouviram.
É interessante notar que as
crianças normalmente não gostam das histórias do Calvin. Quando criança eu não
gostava. Penso que não gostava tanto porque não entendia quanto porque não
precisava. Não entendia porque muitas temáticas das tiras são adultas, como a
solidão frente ao universo, a relação entre o querer e o dever, as discussões
filosóficas contemporâneas. Não
precisava porque o maravilhamento com as coisas estava no meu dia a dia e não
era necessário ser recordado a respeito dele. Em Calvin e Haroldo, Bill Watterson usa a
sabedoria infantil para pensar o mundo adulto e revelar seus absurdos.
Ah... para quem ainda não leu
posso acabar passando uma imagem equivocada da tira. Tenho que dizer que Calvin
não é uma criança modelo, afinal dá muito trabalho aos pais, não é dos melhores
na escola, adora implicar com sua vizinha Susie e só se esforça por ser
bonzinho no fim do ano porque tem medo de não ganhar presentes do Papai Noel. Calvin cria problemas e é muitas vezes
bastante egoísta. Não dá para esquecer que ele também é um menino muito
solitário e que seu melhor amigo é um tigre de pelúcia.
Calvin e Haroldo nos dizem que a vida
tem seus perigos e tristezas, mas que também é repleta de beleza e aventura.
Calvin carrega em si muitas potencialidades e em sua imaginação traduz algumas
delas. Dentro dele há o intrépido astronauta Spiff, sempre em missões de exploração dos recantos
mais sombrios do cosmo. Há também o grande super-herói chamado Homem-Estupendo,
que munido de sua máscara e sua capa encara os mais diversos desafios. Isso
para não falar das vezes em que ele se vê como um Tiranossauro Rex ou um Pterodátilo.
Não conseguiria falar sobre
Calvin e Haroldo sem fazer uma breve menção ao criador da tira. Bill Watterson
nunca se viu como alguém que estava vendendo um produto. Embora tirasse seu
rendimento da publicação de seu trabalho, sempre teve a postura de quem estava
produzindo arte e se esforçou para que sua liberdade não fosse tirada. Seu
trabalho para ele nunca foi uma mera mercadoria, mas a expressão de uma de sua
criatividade e visão de mundo.
Uma decisão de Bill Watterson que trouxe sérias
consequências, foi não licenciar Calvin e Haroldo. O que significa isso?
Significa que ele nunca vendeu os direitos para que os personagens fossem
utilizados em qualquer outro lugar que não a tira. Não há camisas oficias do
Calvin, ou adesivos e canecas do Haroldo. Nem mesmo um desenho animado. Com
isso o autor deixou de ganhar muito dinheiro, mas afirmou que havia coisas mais
importantes que o lucro. Claro que outros grandes autores, como Charles Schulz,
tiveram posturas diferentes e nem por isso podem ser considerados “vendidos”, mas
que a postura de Watterson sinaliza algo
muito importante, não é possível negar.
A dificuldade em dizer o motivo
pelo qual algo que gostamos muito é tão fascinante é que dificilmente nosso
texto é tão interessante quanto aquilo do que pretendemos falar. As tiras de Calvin e Haroldo são fascinantes porque nos
lembram de um fascínio que podemos ter perdido e precisamos recuperar. Lendo
suas tiras frequentemente lembro de um autor que gosto muito: Chesterton. Um
amigo de Chesterton, que também era um de seus principais críticos, o chamava
de “criança de cara gorda” e “menino preso em corpo de homem”. Com certeza tais
sentenças traziam grande alegria ao obeso escritor inglês. Ficava feliz porque
entendia que um crescimento que mata a infância no coração de um homem é algo
muito triste e que amadurecer de verdade não é deixar de ver a magia do mundo,
mas saber desviar de seus perigos.
Alessandro Garcia
Doutorando em Sociologia - UFRJ / Fundador da Oficina de Valores
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