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É comum em discussões sobre aborto, o lado “pró-escolha” fazer a seguinte crítica: “Quem defende a proibição da interrupção voluntária da gravidez o faz por motivos religiosos. Como a religião é um assunto no qual cada um tem liberdade, é errado que um grupo queira impor sua opinião sobre os outros”. Às vezes, tal posicionamento chega às raias do mau gosto com frases do seguinte tipo:
“tirem seus rosários de nossos ovários”.
“tirem seus rosários de nossos ovários”.
Quando me deparo com tais críticas, normalmente concordo com o princípio e discordo da aplicação. Concordo que “questões religiosas” não devem ser impostas a todos. Caso houvesse uma proposta de lei que obrigasse todos os brasileiros a irem a Missa, eu seria o primeiro a me manifestar contra. Faria o mesmo caso o Estado obrigasse cada casal submeter-se a um casamento budista ou forçasse as pessoas a rezarem três vezes por dia viradas para Meca. A liberdade religiosa é uma das maiores conquistas da humanidade e violar as consciências em tal questão com certeza é um crime.
A aplicação de tal princípio no caso do aborto, no entanto é parcialmente equivocada. Quando alguém diz que o aborto não é uma questão religiosa está coberto de razão. Penso que os próprios religiosos com bom senso concordarão com isso. Erra, no entanto quando afirma que por isso interromper a gravidez de forma artificial deve ser livre escolha de cada um (ou uma). Na verdade, o raciocínio correto é justamente o contrário. Se fosse uma questão religiosa, o Estado não teria direito de se intrometer. O governo brasileiro, por exemplo, não tem nada a ver com o fato de que alguém reza ou não reza por exemplo. É justamente o fato de a questão fugir da esfera meramente religiosa que faz com que sua discussão seja tão importante e que sua proibição pelo Estado não seja uma violação das consciências.
Para avançarmos na discussão, penso serem necessários ainda alguns esclarecimentos. Creio que parte da confusão em torno da religiosidade ou não do tema se dê porque muitos dos que se opõem a legalização de tal prática pertencem a grupos religiosos. Reconheço que a retórica e a atitude de vários religiosos no que tange essa questão possa não ser das melhores, no entanto isso não desmerece o movimento como um todo. Nem tudo que vem de uma religião é algo apenas religioso, afinal as religiões são depositórios de valores e muitos destes valores podem muito bem ser aceitos por pessoas que não comungam das mesmas crenças.
Um exemplo quase trivial do que foi argumentado no parágrafo acima é a guarda dos dias santos semanais. Tanto o cristianismo quanto o judaísmo, por exemplo, defendem que um dia da semana deve ser separado para o repouso. Embora as religiões discordem sobre detalhes como qual seria o dia correto para fazer isso ou como se deve repousar, é fato de que tal prática de alguma maneira gera um direito de descanso para o trabalhador. Não é comum ver alguém dizendo que como a folga de domingo tem sua gênese na religião, ela é algo ruim e por isso passará a trabalhar como em todos os outros dias. Não há reclamações porque embora a origem do costume seja religiosa, as consequências do mesmo são benéficas para todos.
Outro ponto que merece ser analisado com cuidado é se a contradição ao aborto é feita em termos religiosos ou não. É claro que o discurso de um religioso “pró-vida” pode ser algo do tipo: Não devemos aprovar o aborto porque a Bíblia diz que não; Ou ainda: Caso o aborto seja aprovado, os responsáveis por isso arderão no fogo do inferno. Nesse caso, embora suas palavras possam ser entendidas e respeitadas dentro de seu sistema de crenças, é claro que aqueles que não creem na Bíblia ou no inferno dificilmente aceitarão tais argumentos.
O discurso do religioso em questão pode ser, no entanto, muito diferente. Ele pode argumentar, por exemplo, que a vida começa na concepção. Falar sobre as consequências psicológicas para a mulher. Defender que a constituição ampara o nascituro. Dizer que o Estado, em vez de trilhar o caminho do aborto, deve dar condições para que as crianças sejam bem planejadas. Enfim, os exemplos poderiam ser multiplicados, mas isso não é necessário. Estes foram expostos apenas para dizer que tais argumentos, mesmo quando mobilizados por pessoas que professam uma religião, não são argumentos religiosos.
Quem responde a argumentos como os elencados no parágrafo acima simplesmente falando que o Brasil não é uma teocracia, que o estado é laico e outras coisas do tipo, ou não ouviu o que foi dito ou não quis ouvir. Ou quem sabe, queira apenas vencer o debate em questão e não buscar o melhor caminho. Sinceramente, tal postura não me parece muito honesta. Sendo bem direto: penso que muitas vezes há bastante preconceito e dogmatismo nos discursos daqueles que se dizem livres pensadores e defensores da tolerância.
Lembro agora de uma conversa com uma aluna, quando falávamos sobre se seria correto e democrático o Supremo Tribunal Federal decidir sobre o aborto de anencéfalos. A reposta dela foi mais ou menos a seguinte: não importa muito se o procedimento foi democrático ou não porque eu concordei com a decisão. Essa estudante foi ao menos honesta na sua postura dogmática, o que nem sempre acontece. Atitudes como a dessa discussão podem ser mais comuns do que parecem em um primeiro momento, apenas permanecem veladas. Infelizmente muito do que é visto como uma postura progressista ou pautada pela racionalidade, pode ser apenas senso comum e discriminação bem disfarçados.
Claro que os argumentos dos religiosos não são infalíveis e que muitos equívocos já foram cometidos em nome da fé x ou y. No entanto, muitas coisas boas também já nasceram em ambientes religiosos e muitos valores hoje tidos como seculares tiveram origens em homens, mulheres e instituições que buscavam ser fiéis àquilo que julgavam ser Revelação Divina. Penso, por exemplo, na noção de irmandade universal e dignidade da pessoa humana. Também me vem à cabeça o movimento pelos direitos civis liderado por Martin Luther King nos EUA. Penso que isso deva ao menos fazer pensar um pouco aqueles que tapam os ouvidos para qualquer argumento levantado por uma pessoa religiosa alegando coisas como “a religião só traz atraso ao mundo” e outras do tipo.
A proibição ou legalização do aborto, com toda certeza, não é algo que deva ser encarado como uma prática religiosa. É uma questão ética muito séria. E deve ser pensada dessa maneira. Friso o 'deve ser pensada' porque em minha experiência pessoal vejo pessoas que repetem frases como “o aborto é um direito da mulher”, sem mesmo pensarem se o embrião é um ser humano ou não. Creio que todos concordarão que a reposta positiva ou negativa a essa última pergunta pode mudar todo o cenário da discussão.
Termino dizendo que concordo com aqueles que temem os que desejam impor sua visão religiosa aos outros. Também temo tais grupos. Acrescento, no entanto que cultivo outro tipo de temor. Este talvez até mais profundo. Tenho grande medo daqueles que, mesmo não possuindo fé religiosa alguma, acreditam de todo o coração e toda alma em certos clichês e os desejam impor. Penso que uma ditadura dos clichês pós-modernos pode não ser lá muito melhor que uma teocracia fundamentalista.
Alessandro Garcia
Doutorando em Ciências Sociais - UFRJ / Fundador da Oficina de Valores
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