Por: Alessandro
Talvez muitos dentre os que leram
a pergunta que intitula esse texto tenham soltado um sorriso e julgado que se
tratava de uma piada. Talvez uma brincadeira do tipo “qual é a cor do cavalo
branco de Napoleão?” ou “Onde aconteceu a última reunião de Papas?”. Tal reação decorre de que uma primeira
resposta à questão é bastante óbvia. Em que Deus os ateus não acreditam? Em
nenhum, afinal se acreditassem em algum tipo de divindade, não seriam ateus.
A pergunta, no entanto, não é tão
banal assim. Embora não creiam em nenhum tipo de divindade, dificilmente
encontramos ateus argumentando contra a existência de Vishnu
ou Odin. Quando um ateu diz que não acredita em Deus, na grande maioria
dos casos, ele está referindo-se primordialmente
ao Deus no qual os cristãos acreditam. É contra o cristianismo que a descrença
se dirige em um primeiro momento e só posteriormente se estende às demais
religiões.
Essa primeira resposta, no
entanto, trata a questão sobre que Deus é negado pelos ateus de maneira muito
superficial. Uma maneira mais
interessante de responder bem a pergunta levantada é prestar atenção naquilo
que os “não crentes” dizem, nas críticas que fazem, nas negações que formulam. Nessas colocações
com certeza encontra-se uma concepção, uma imagem, de Deus.
E é nesse Deus que os ateus não creem. Todos as divindades são tragadas
por essa primeira negação. Mas que Deus será esse?
A primeira característica do Deus negado pelos ateus é que ele é,
supostamente, fruto da ignorância humana. O argumento é simples e forte: os
seres humanos, em seus primeiros contatos com o mundo, não entendiam os fenômenos naturais, mas precisam de alguma forma, explicá-los.
Como não possuíam explicações melhores, criaram as divindades como uma resposta
para tudo o que ainda não conheciam. Com o avanço da humanidade as coisas
mudaram, e a natureza passou a ser mais bem compreendida. Isso fez com que as
explicações sobrenaturais acerca da natureza fossem, em grande parte,
superadas.
O argumento continua afirmando
que, apesar de toda e evolução das ciências, há ainda muitas coisas que não
sabemos. Por isso a crenças nas
divindades continua. Deus é compreendido como a hipótese que temos para
explicar o que a ciência ainda não conseguiu. Nesse sentido, os ateus negam
aquele que ficou conhecido como “deus das lacunas”, ou seja, um ser fruto da
fantasia que é uma resposta pronta para todas as perguntas que não sabemos
responder direito.
Quando se fala contra o “deus das
lacunas”, duas posturas são as mais comuns: a primeira é a daqueles que dizem
que tal Deus não existe e que a própria evolução da humanidade fará com que a
religião despareça. A segunda, mais combativa, associa a crença em Deus com o
obscurantismo em um sentido mais ativo. Ou seja, acreditar em Deus não seria
apenas fruto da ignorância, mas a causa da ignorância. De acordo com essa visão, as religiões seriam
inimigas diretas da ciência, uma vez que atrapalhariam as pessoas a adquirir um
conhecimento verdadeiro do mundo.
Outra característica comum no
“deus dos ateus” é que ele é tido como inimigo do progresso social. As crenças religiosas são tidas como um depósito
de ideias retrógradas defendidas por um punhado de fanáticos que possuem como
único argumento o suposto fato de que é a vontade de Deus que as pessoas se
comportem de tal maneira e não se comportem de outra. Esse tal deus possui
diversas variações: ou é fruto do ressentimento dos fracos para com os fortes,
ou é uma invenção de classes abastadas que querem manter o domínio sobre os
pobres, ou ainda uma projeção na qual o homem aliena aquilo que tem de melhor
em si mesmo.
Há ainda um argumento comum por
parte dos ateus e que revela algo de sua imagem de Deus. Existe mal no mundo,
nenhum deus bom permitiria que o mal existisse. Logo, Deus não existe. É
interessante notar que muitas vezes tal raciocínio é apresentado de maneira
muito passional. Parece que antes da descrença veio a revolta, indignação ou,
em muitos, casos certo ódio.
Fruto da falta de conhecimento.
Fonte de ignorância. Barreira para o progresso. Insensível ao sofrimento
humano. Estes com certeza não são os únicos, mas alguns dos principais títulos
do Deus que é negado pelos ateus. E, acrescento eu, se Deus é realmente tudo
isso, eles estão mais do que certos em negar. Na verdade, se os atributos do
divino podem ser resumidos ao que foi aqui apresentado, a negação desse deus é
a única atitude digna de um ser humano. Atitude digna e necessária.
A situação, no entanto fica mais
complexa, se um ateu explicar tais características de Deus para um cristão que
conheça bem o cristianismo. Quando o ateu disser “Eu nego esse Deus”, o cristão
responderá: “Eu também! Nego com todo meu coração e com toda a minha alma!”. E
mais: o cristão considerará importante trabalhar para que tal “criação maléfica
da mente humana” despareça das consciências. Nessa “não crença”, cristão e ateu poderiam dar-se as mãos. A separação entre os dois apenas se daria no
momento em que o ateu dissesse que julga que esse deus fictício é equivalente
aquele revelado pela fé cristã.
O ponto que defendo neste texto é
que o deus criticado pelos ateus não é o Deus em que os cristãos acreditam, mas
uma espécie de espantalho, ou seja, um boneco criado que toma as vezes do
original.
Basta aprofundar um pouco a
história para perceber que no cristianismo houve grande incentivo a ciência e
gênios como Copérnico e George Lemaitre (criador da teoria do Big Bang) foram
padres. Claro que embates entre religião e ciência ocorreram e podem ocorrer,
mas tais situações podem ser enxergadas mais como ajustes que como um conflito
do qual só um restará de pé. O deus das lacunas pode ter sido fruto de certo
imperialismo da religião que, em certo momento da história foi utilizada para
explicações que não eram de sua alçada. Hoje, por vezes, ocorre o contrário,
com o imperialismo científico, isto é uma postura na qual a ciência é utilizada
para responder questões para as quais não está habilitada.
A acusação de que Deus atrapalha
o progresso também pode ser questionada. Em primeiro lugar, é necessário saber
de que progresso está se falando? Progresso econômico? Muitas das nações mais
prósperas do mundo são religiosas. Progresso político e social? Muitos
movimentos importantes, como de combate a escravidão ou luta pelos direitos
civis, foram travadas por pessoas de fé profunda.
Mesmo a tão falada indiferença
divina sobre o mal pode ser olhada como o respeito do Pai à liberdade do filho
e como consequência de uma autonomia relativa da criação frente ao criador. Um
mundo no qual o mal não fosse possível seria um mundo onde a liberdade também
não existiria e, sem ela muitas das coisas que julgamos mais valiosas também
seriam impossíveis.
Aqui cabe um ponto importante,
várias das críticas dos ateus se dirigem a uma ideia de Deus encontrada em
muitos ambientes cristãos. Há cristãos que apresentam um cristianismo triste.
Há cristãos que opõem fé e razão. Há cristãos que ignoram sua responsabilidade
de tornar esse mundo um lugar melhor. Tais cristãos reduzem Deus a uma pálida
caricatura e fazem com que seu brilho pareça no máximo uma luz fosca. Nesse
sentido, é bastante compreensível a confusão de muitos ateus.
Por outro lado, a
responsabilidade não está só de um lado. É comum encontrar ateus que criticam
os cristãos por serem dogmáticos e que, ao mesmo tempo, não possuem a liberdade de duvidar dos
próprios dogmas. É algo bom negar o deus das lacunas, mas é algo ruim negar-se
a preencher as próprias lacunas simplesmente porque se está preso a um modismo
intelectual.
Encerro dizendo que escrevi esse
texto por vários motivos. O primeiro é o respeito profundo que tenho pelos
ateus. Respeito tais pessoas o suficiente para levar a sério o que dizem e para
tentar, dentro de minhas limitações, dar as razões pelas quais julgo que estão
equivocadas. O segundo motivo é simplesmente o fato de eu acreditar que um
olhar sério para os atributos dos ídolos que negamos pode ser um passo
fundamental para abrirmo-nos a crença em um Deus do qual não temos bons motivos
para duvidar.
Alessandro Garcia
Doutorando em Sociologia - UFRJ / Fundador da Oficina de Valores
3 comments:
Alessandro, sempre achei as suas aulas de introdução à sociologia na UCP maravilhosas, e adorei suas explicações neste blog, por isso me interessei por comentar, raramente faço isso, mas sei que estou dialogando com alguém que vale a pena.
Não sou ateu, acredito que deva existir algo, só não sei o quê, não consigo acreditar em um deus pessoal, que tem preferências. Quando me deparo com a parábola do joio e do trigo, explicada, espero que erradamente, por mim no parágrafo seguinte, acredito que o deus cristão teria seus preferidos.
A parábola do Joio e do trigo expressa a ideia de seleção pregada pelo Cristo, essa colheita dos “melhores” é o maior problema da humanidade, pois quando se acredita que existam “joios”, que não têm qualidades, se discrimina, ou seja, vive-se junto com os “maus” sabendo que apenas os “trigos”, os que se adéquam a uma norma estabelecida e são chamados de bons, serão colhidos.
Isso define um deus preconceituoso que criou, ou permitiu que outro “deus” criasse, criaturas fadadas ao fracasso para fortificar os seus “fortes” seguidores.
Leonidas S.Siqueira
Olá Lêonidas,
Obrigado pelas palavras. Fico muito feliz em saber que gostava de minhas aulas e que acompanha o blog. Obrigo mesmo pelo ânimo que me dá em continuar com o trabalho.
Sobre sua questão, a acho da maior relevância. Confesso que nunca tinha pensado em escrever para o blog sobre essa temática, mas agora fiquei com a pulga atrás da orelha. Me comprometo a escrever um texto com a seguinte temática "Pode ser Deus considerado uma pessoa?"
Essa questão das "preferências" realmente é algo que incomoda, ainda mais quando é mobilizada de uma maneira talvez "preconceituosa" e "elista" por certos grupos. Pessoalmente não enxergo a coisa dessa maneira, afinal há liberdade no ser humano e creio que Deus quer a realização (salvação) de todos. De qualquer forma, creio ser melhor deixar para desenvolver a coisa no texto...
Só peço desculpas se demorar um pouquinho...
Abraços e meu votos de feliz Natal e ótimo Ano Novo!
Boas festas!!!
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