Há mais de dois anos tento dar testemunho de uma realidade muito
dolorosa da minha vida. O que me motivou a finalmente materializar essa decisão
foi crer no paradoxo do testemunho: existe uma capacidade inexorável em
proporcionar conforto através do desconforto do "eu"; é quando a
minha multidão de mazelas, longe de ser motivo de escárnio para mim, pode de
alguma forma trazer conforto; não por proporcionar, para aqueles que leem,
alívio por não serem tão miseráveis quanto eu, nem por fazer se sentirem, ao
contrário, tão miseráveis, mas por se redescobrirem simplesmente humanos,
passíveis de erro, tal como eu. Este testemunho também busca dialogar com
periferias semelhantes.
Em
duas palavras: sou gay. Em mais de duas, seria mais correto afirmar a tendência
homossexual que tenho, pois admitir-se gay seria aceitar essa condição e passar
a viver de acordo com as implicações da mesma, o que embora por pouco tempo já
tenha sido o caso, admito, não o é mais. Há luta incessante contra essa
realidade, e fé, muita fé na vitória, mas nem sempre foi assim.
Resumir a maior dor de nossas vidas em poucas frases não é uma
tarefa fácil, mas vou tentar. Quando criança, tive uma experiência sexual
traumática com alguém bem próximo de mim: meu irmão. Não chegou a ser um abuso
por ter sido dada uma espécie de permissão, embora obviamente limitada pela
pouca idade de ambos. Tempos depois, este episódio desencadeou sérios
problemas de saúde, a começar por uma
série de surtos psicóticos. Fui hospitalizado e ainda hoje carrego as marcas deste
acontecimento. As caixas de remédios que tomo todos os dias não me deixam
esquecer tudo o que me aconteceu. Além disso, sou lembrado constantemente pelos
sentimentos de inferioridade, rancores, distorções cognitivas e, pior de tudo,
as memórias de algumas relações destrutivas originadas deste contexto, tanto
heterossexuais como homossexuais. As heterossexuais porque eu sentia uma
incontrolável necessidade de provar a mim mesmo que eu não era gay; e as
homossexuais porque o ser humano é controverso, e com frequência tende a
repetir em um ciclo vicioso aquilo que já o feriu e foi motivo de tristeza.
Vivi vários tipos de degradação. Fiz do meu corpo mercadoria.
Embora não tenha me vendido por dinheiro, acredito que não faz muita diferença,
pois a prostituição pode ser por outro tipo de moeda. Sempre soube,
entretanto, que não fui “destinado” para isso. Resisti à impregnação midiática
como pude, eu me recusava a acreditar estar determinado por essa condição. A
harmonia de reencontrar meu “eu” machucado por não conseguir apagar os
vestígios do passado, incapacitado de perdoar meu irmão e principalmente a mim
mesmo. A verdade é que não conseguia parar de me questionar “por que logo eu?”.
Algo dentro de mim tinha sido deturpado
e embora nunca tivesse demonstrado quaisquer sinais externos da minha condição
e tendência, o meu interior estava completamente bagunçado. Escondido em mim
mesmo, decidi guardar essa história por toda a minha infância e adolescência
sem ninguém ter sequer desconfiado de algo. Apenas quando adulto, decidi romper
timidamente com o anonimato.
Foi neste período da vida que errei novamente: fui precipitado,
confiei demais, falei demais; e na ânsia de finalmente poder dividir com alguém
o que carreguei sozinho por tantos anos, me feri mais ainda. Uma das maiores
decepções foi ter descoberto muito tempo depois que um amigo com quem partilhei
minha situação contou tudo em detalhes para sua namorada. Outra decepção que
tive foi quando um outro amigo, em acesso de raiva, jogou meu passado na minha
cara, reduzindo quem sou ao que fiz.
Mas nem tudo foi espinhos. Quando parei de me perguntar “por que
logo eu?”, detive-me no essencial: nos motivos de não querer isso, e nos meios
para driblar essa condição da melhor maneira possível. Assim, redescobri a mim
mesmo. Descobri que esses desejos eram frutos muito mais dos traumas do que
algo inerente ao meu ser, constatando, inclusive, a inexistência deles quando,
por algum motivo, não tinha os acontecimentos presentes na memória. Ao
verbalizar finalmente para o meu irmão tudo que passei nesses anos por conta do
ocorrido entre nós, perplexo percebi que já o havia perdoado, e posteriormente
nos tornamos grandes amigos. As decepções nas amizades fizeram nascer virtudes
inesperadas, como prudência, empatia, caridade, paciência, autoconhecimento e a
percepção de que perdoar não é passar a mão na cabeça ou imprudentemente voltar
a confiar sem o mínimo de garantias de mudança no outro. O mais legal disso
tudo é que aprendi a perdoar a mim mesmo.
Nada disso é fácil! Há mais de uma década luto contra isso. Dói,
dói muito. E não dói apenas por causa dos preconceitos da sociedade ou da
falta de aceitação dos outros. Dói também porque acredito que isto não é o que
sou e por se colocar de certa maneira na
contramão do meu maior sonho: constituir uma família e ser pai. Na verdade,
acho que há tendências nas quais estamos assentados sem nunca nos sentirmos
realmente plenos com elas. Trago uma palavra de conforto: há uma esperança. Se
não acreditasse ser possível reescrever essa história, jamais daria este
testemunho. Escrevi essas palavras na esperança de partilharmos esperanças.
Saber que minha história talvez possa alcançar algum coração, seja de alguém na
mesma realidade que eu, seja algum familiar que esteja lidando (ou tentando
lidar) com essa situação ou até mesmo alguém que já destratou uma pessoa por
ela ser homossexual, já faz valer a pena escrever este texto.
Desconfio que apenas a minha vontade falha e inconstante de mudar
jamais poderia me sustentar nesse campo de batalha por tantos anos. Foi Deus
quem segurou minha mão por todo esse tempo. Sussurrou aos meus ouvidos: “não te
preocupes, estou aqui”. O Senhor me prometeu vitória. Diante de tal promessa,
não ousei pedir um prazo: bastou saber que Ele compreende e respeita o meu
tempo de mudança, pois sabe que isso não será resolvido de um dia para o outro.
Consciente disto, tomei posse da minha
luta; o desespero tão comumente seguidos às quedas deram lugar a esperança
desmedida, ao esforço concreto e a renúncia diária. Como consequência, vieram
os resultados e sei que muito mais está por vir! Descobri também que talvez tão importante
quanto os resultados em si mesmos, é o tipo de pessoa que vou me moldando neste
processo e as virtudes conquistadas.
Esse testemunho é sobre um homem que, devido à sua história,
passou a ter atração por outros homens. É a história de um
homem que decidiu apostar a contragosto no cavalo azarão da esperança. Em outras palavras, esse testemunho é a
história de um homem que quer modificar esse quadro e acredita ter esse
direito. E não só o direito, mas também o dever de dizer a todos que estejam
passando por algo semelhante: “você também tem esse direito! Não deixe nada nem
ninguém dizer o contrário! A linha de
chegada não está tão longe quanto você imagina. Experimente ter esperança”.
Leitor Anônimo
Este texto foi enviado ao nosso blog por um leitor que preferiu permanecer anônimo. Esperamos que seu testemunho possa nos ajudar a compreender a história daqueles que escolhem ter esperança mesmo diante de grandes contradições.
1 comments:
Uaaal! Sensacional! Obrigada muito pela partilha e testemunho!
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